NotíciasSaúde em Foco

‘Mudanças climáticas lançam dúvida sobre erradicação da fome’

Pesquisadora alerta para impactos do aquecimento global na agricultura e no acesso à comida saudável

Quase 75% dos países da América Latina, incluindo o Brasil, estão altamente expostos a eventos climáticos extremos, que podem aumentar a insegurança alimentar. É o que aponta um relatório da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).

O documento analisa a situação da alimentação no continente por meio de diversos indicadores, como o acesso à comida saudável e índices de desnutrição. E se debruça sobre o impacto das mudanças climáticas na segurança alimentar.

O texto destaca que, apesar de a fome ter diminuído na região, esse progresso pode ser comprometido pela alta vulnerabilidade a chuvas e secas intensas, que afetam a produção dos mais diversos alimentos.

Colheitas prejudicadas: mudanças climáticas já comprometem cultivos e alimentação pelo planeta – Foto:(Reprodução/Internet)

A pesquisadora Fernanda Marrocos, da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, explica, a seguir, os pontos mais sensíveis da relação entre clima e comida.

Conheça a nossa linha de produtos na pagina em exibição no INSTAGRAM clique na imagem acima

Qual é a relação entre as mudanças climáticas em curso e a insegurança alimentar?

A mudança climática é considerada um dos fatores determinantes das atuais taxas de insegurança alimentar no mundo – além de fatores como conflitos, crises econômicas, desigualdade persistente, ambientes alimentares não saudáveis. O problema é que todos esses fatores estão aumentando em frequência e intensidade, atuando de forma sinérgica, o que acaba comprometendo a segurança alimentar e nutricional das populações, já que atingem a disponibilidade de alimentos, os preços e o acesso a dietas mais saudáveis.

Isso é preocupante já que o relatório recente publicado pela OPAS aponta que a América Latina e Caribe é a região com a segunda maior exposição a eventos climáticos extremos (como seca, inundações, ondas de calor e tempestades) em nível global, depois da Ásia. Na região, 74% dos países têm uma elevada exposição a esses eventos, o que significa que ocorrem com elevada frequência, e 52% são vulneráveis ​​a eles.

Ou seja, apesar da redução da fome e da melhoria da segurança alimentar na região nos últimos anos, o aumento da frequência e da intensidade dos eventos climáticos, juntamente ao aumento do custo de uma dieta saudável e o progresso desigual no acesso econômico a tais dietas, lançam dúvidas sobre a real possibilidade de erradicação da fome na América Latina e Caribe até 2030.

Então há impactos diretos na agricultura, na economia… e na dieta?

A variabilidade e os extremos climáticos exercem múltiplas pressões sobre os sistemas alimentares, podendo impactar a produtividade agrícola devido a perdas nas colheitas ou redução da produção e afetando o funcionamento das cadeias de abastecimento alimentar por meio de interrupções na infraestrutura, no transporte e na distribuição de alimentos. Isso também pode levar a mudanças no comércio de alimentos, gerando um aumento nas importações para compensar as perdas na produção.

Além disso, as mudanças climáticas afetam o acesso e o consumo de alimentos. O impacto dos extremos climáticos nos meios de subsistência está diretamente relacionado à redução da renda, particularmente para aqueles que dependem de recursos naturais relacionados à agricultura, o que reduz sua capacidade de comprar alimentos.

As perdas na produção também podem levar a um aumento nos preços dos alimentos para os consumidores, reduzindo o acesso e disponibilidade de dietas saudáveis. À medida que o poder de compra das pessoas diminui, os padrões de consumo alimentar são afetados, pois a segurança alimentar, a diversidade da dieta e a qualidade nutricional dos alimentos consumidos tendem a se deteriorar.

Por fim, a variabilidade e os extremos climáticos podem afetar o abastecimento de água potável, o que pode ter implicações para a segurança alimentar e nutricional. Só cabe destacar que esses efeitos não afetam todos os subgrupos da população de maneira igual. Eles atingem principalmente os agricultores familiares, os povos indígenas, além das mulheres e crianças pequenas.

E a situação é particularmente crítica por aqui…

A América Latina e Caribe já é considerada a região que apresentou o custo de uma dieta saudável mais alto em 2022, estimado em 4,56 dólares de paridade de poder de compra (PPC) por pessoa por dia, acima da média global de 3,96 dólares. Ou seja, a garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável ficará ainda mais difícil de ser concretizado frente às mudanças climáticas.

Quais cultivos estão mais ameaçados no momento?

Como o Brasil desempenha papel essencial na produção global de alimentos, com seu imenso potencial agrícola, acho que podemos usá-lo como exemplo para discutir o problema. Resultados de um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que sistematizou e analisou os impactos das mudanças climáticas na agricultura nacional, demonstram quedas na produtividade de diversos cultivares, como feijão, mandioca, gado bovino, cacau, café, milho, aves, laranja, arroz, tomate, cana-de-açúcar, soja e trigo.

Porém, os autores identificaram a necessidade de avaliar impactos para além da produtividade (como área de produção e valor nutricional dos alimentos) e de incluir uma gama mais ampla de culturas (já que muitos estudos focam em algumas commodities). Deve-se considerar, ainda, que a perda da produtividade advinda das mudanças climáticas pode ser intensificada pela impossibilidade de se ter agroquímicos para a correção dos solos (uma vez que o Brasil é dependente de importação desses produtos).

E há prejuízos à qualidade dos alimentos?

Sim, outro aspecto importante é a redução do valor nutricional dos alimentos de origem vegetal (principalmente cereais e leguminosas como alguns feijões) devido ao aumento das temperaturas e da da presença de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Ssegundo estudos conduzidos pela bióloga Marta Vasconcelos, da Universidade Católica Portuguesa, quanto maior a quantidade de CO2 na atmosfera e a expectativa é que continue sendo crescente –, mais as plantas sintetizam carboidratos (como a glicose) ao invés de outros nutrientes indispensáveis para a saúde humana (como proteínas, ferro e zinco.

Quais as saídas possíveis para manter a segurança alimentar frente às mudanças climáticas?

Acredito que as principais estratégias para estariam divididas em três principais eixos. O primeiro é dispor de um arcabouço legal de segurança alimentar e nutricional capaz de produzir respostas aos desafios inerentes às mudanças do clima. No caso do Brasil, poderíamos citar a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, a qual se revela um instrumento essencial alinhado ao desenvolvimento sustentável e oferta de alimentos saudáveis; a Política Nacional de Abastecimento, que prevê diretrizes para um sistema integrado de abastecimento alimentar, englobando ações da produção ao consumo e mitigação da ação climática; e os Guias Alimentares, como o Guia Alimentar para a População Brasileira, que apresentam as diretrizes nacionais de alimentação saudável e será adotado como referência no Plano de Adaptação para Segurança Alimentar do Plano Clima.

E as outras duas?

A segunda é a redução da tríplice monotonia do sistema alimentar: a monotonia das paisagens agrícolas, a monotonia das espécies genéticas de animais criados para consumo humano e a monotonia alimentar (com aumento crescente no consumo de produtos de origem animal e de ultraprocessados). E a terceira é baseada na adaptação e resiliência dos sistemas alimentares, com incentivo às práticas agrícolas regenerativas, ao uso eficiente dos recursos hídricos, à redução do desperdício de alimentos, ao fortalecimento de cadeias de abastecimento locais, ao apoio aos agricultores familiares e pequenos agricultores e à manutenção das práticas de produção de comunidades tradicionais, como os indígenas e quilombolas.

Qual é o problema de apostar em ultraprocessados para manter a segurança alimentar?

O problema de apostar nos ultraprocessados é que, além de a produção desses produtos ser altamente dependente de um número muito reduzido de cultivares (como soja, trigo, milho, cana-de-açúcar) e do uso elevado de agroquímicos e fertilizantes (além de outros potenciais impactos negativos sobre a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos), eles não agregam nenhum benefício à saúde Estudos demonstram que o consumo aumentado desses produtos está associado à pandemia da obesidade e de outras doenças crônicas não transmissíveis.

Isso é preocupante, principalmente pelo fato de esses desfechos de saúde estarem aumentando rapidamente em países de renda média e baixa, como é o caso do Brasil. Dados mais recentes sobre a prevalência da obesidade entre adultos mostram um aumento constante nos últimos 20 anos. Na América Latina e Caribe, a prevalência é quase o dobro da estimativa global de 15,8%, atingindo 29,9% da população adulta na região em 2022, o equivalente a 141,4 milhões de pessoas.

Compartilhe com os amigos essa matéria via:

WhatsApp Face Book e Telegram

Por: Chloé Pinheiro

Fonte: Fernanda Marrocos, pesquisadora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.

Transcrito: https://veja.abril.com.br/saude/mudancas-climaticas-lancam-duvida-sobre-erradicacao-da-fome/

 

Deixe uma resposta