Brasileiros desvendam possível fonte de problemas após cirurgia bariátrica
Cientistas descobrem que parte do estômago isolada por um dos procedimentos fica em condições propícias ao desenvolvimento de um câncer
Há mais de uma década um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) que se dedica a estudar as cirurgias para tratamento da obesidade se inquietava com uma questão: o que acontece com um órgão que fica escanteado e sem serventia dentro do corpo? Melhor explicando: quando se grampeia o estômago de uma pessoa obesa, numa cirurgia bariátrica, e deixa-se uma parte desse órgão sem uso, como será que ele reage?
Depois de anos investigando o assunto, os especialistas do time do professor Dan Waitzberg publicaram, na prestigiosa revista científica Nature, as conclusões inéditas a que chegaram. Eles identificaram que o órgão abandonado, longe de ficar no maior marasmo, abriga uma intensa atividade lá dentro. Só que uma atividade nada bem-vinda para o organismo: o ambiente ali torna-se potencialmente propício ao surgimento de um câncer.
A descoberta, e a descrição pioneira de como isso acontece, foi feita a partir da avaliação minuciosa de 20 mulheres submetidas ao by-pass gástrico, a cirurgia mais utilizada no tratamento da obesidade hoje. As voluntárias passaram por exames de endoscopia (que averigua o estado do estômago) acompanhados de biópsias, antes e depois do procedimento. As alterações descritas foram observadas apenas três meses após a operação.
Entrevistamos três dos 17 autores do estudo: a nutricionista e educadora física Graziela Ravacci, o professor Dan Waitzberg e o endoscopista Robson Ishida, do Serviço de Endoscopia do Hospital das Clínicas de São Paulo, que realizou os complexos exames nos estômagos desativados.
Antes de seguirmos com a nossa conversa, antecipamos um recado: se você já fez ou está considerando fazer uma cirurgia de by-pass gástrico, não entre em pânico. Os cientistas continuam afirmando que ela tem inúmeras vantagens, quando bem indicada, para tratar um problema grave como a obesidade, que aumenta as taxas de mortalidade e a incidência de uma série de doenças como diabetes, infartos, AVCs e inclusive diversos tipos de câncer.
Além disso, mais estudos serão necessários para entender se outros fatores, como hábitos alimentares e estilo de vida em geral, podem atuar junto com as alterações promovidas pela cirurgia, definindo se a pessoa vai, de fato, chegar a desenvolver um tumor. No entanto, o achado da equipe brasileira no mínimo recomenda a realização de um acompanhamento periódico com um gastroenterologista após a operação.
SAÚDE: O estudo de vocês aponta que, após a cirurgia de by-pass gástrico, a parte do estômago que fica fora do processo digestivo (chamada de “estômago excluso”) torna-se um ambiente propício ao surgimento de um câncer. Já é possível saber quanto se aumenta o risco de isso acontecer?
Ainda não. Tem sido observado, ao longo dos anos, o aparecimento de alguns casos de câncer no estômago excluso em pacientes submetidos ao by-pass gástrico. Mas a incidência do problema ainda não é conhecida — possivelmente, tanto pela dificuldade de seguir, a longo prazo, as pessoas que se submeteram à cirurgia, quanto pela dificuldade técnica de avaliar o estômago excluso. Além disso, pode haver uma eventual negligência dos sintomas desse tipo de câncer, como náuseas, vômitos e emagrecimento.
Dessa forma, os casos de câncer gástrico podem, sim, ter sido subnotificados. E isso ajudaria a explicar, parcialmente, a grande variação no tempo de diagnóstico da doença após a bariátrica: entre três e 22 anos. Mas a maior parte dos tumores relatados após o by-pass foram tratados cirurgicamente, em tempo hábil.
Em 16 das 20 pessoas avaliadas, houve um aumento de processos inflamatórios e a expressão de genes favoráveis ao aparecimento do câncer. Por que isso acontece?
O estômago excluído, após a cirurgia, adquire um formato de bolsa e tomba para baixo. Esse novo formato o deixa suscetível à bile e também a outros fluidos produzidos na porção inicial do intestino, e pode armazenar uma parte deles.
Na verdade, nosso estudo sugere que as mudanças favoráveis ao desenvolvimento do câncer têm início com a falta de alimentos no estômago excluso, após a cirurgia bariátrica. Isso pode prejudicar o funcionamento do tecido gástrico e reduzir a formação de substâncias protetoras como o muco, uma barreira natural que controla a entrada de bactérias e as inflamações, deixando as células do estômago mais expostas a agentes agressores.
Nesse ambiente desprotegido, o refluxo intestinal aumenta o pH dessa parte do estômago e provoca a proliferação de bactérias que deveriam ser encontradas somente no intestino. Juntos, o refluxo e as bactérias podem se tornar componentes tóxicos para o estômago excluso, desencadeando processos altamente inflamatórios. A inflamação, por sua vez, produz grandes quantidades de radicais livres, moléculas que causam lesões e mortes de células. Por causa desses danos, a regeneração do tecido é ativada.
Ocorre que nosso estudo identificou que parte desse processo de regeneração foi comandada por genes que não são específicos do estômago. Nós observamos um aumento na expressão de genes específicos do intestino e genes classicamente identificados ao câncer. Isso significa que o estômago excluso está perdendo sua identidade e pode estar se programando para parecer um intestino.
O fator mais preocupante de todas essas alterações é o sistema imune ativar um processo chamado de tolerância imunológica, que abre uma janela para tolerar mutações celulares. Isso é fator determinante para o aparecimento e a instalação do câncer.
Por todas essas razões, nosso estudo denomina o ambiente do estômago excluso de pré-maligno. Em longo prazo, ele pode ser considerado solo fértil para o desenvolvimento do câncer.
O estudo aponta que esse refluxo intestinal já ocorre em pessoas obesas antes mesmo da cirurgia em função do acúmulo de gordura abdominal. O que o by-pass gástrico faz é intensificar o volume desse refluxo. Mas a incidência de câncer de estômago, em pessoas obesas, então já é maior que na população em geral?
Sim. A obesidade aumenta o risco de cerca de 13 tipos de câncer, incluindo o de estômago. A cirurgia bariátrica reduz o risco de tumores associados a alterações hormonais, mas pode aumentar o risco de câncer no intestino grosso. Nosso achado sugere, agora, que existem condições propícias para o eventual desenvolvimento de câncer gástrico no estômago excluso.
As alterações que tornam o estômago excluso um ambiente propício ao câncer foram detectadas apenas três meses após a cirurgia. O que isso significa?
Indica que os casos de câncer já relatados poderiam ter uma relação de causa e efeito com o bypass. Até o nosso estudo ser realizado, os casos de câncer no estômago excluso foram descritos como uma possível coincidência. Nós demonstramos que a cirurgia pode promover uma reprogramação metabólica e genética do estômago excluso que é propícia para o desenvolvimento do câncer. No entanto, fatores que determinam efetivamente se o câncer vai ou não se instalar ainda não são conhecidos.
Isso pode indicar também que as condições para a incidência do câncer se criam rapidamente após a cirurgia?
Sim, é possível que as condições se criem rapidamente. Mas o oposto também é verdadeiro. De maneira geral, o câncer é um processo lento e seu aparecimento depende de várias mutações em genes específicos na célula. Essas mutações podem ocorrer ao longo dos anos ou parar em um determinado momento.
Tudo depende do ambiente em que essas células estão expostas. Quanto mais estressante o ambiente, maiores as chances dessas mutações acontecerem. Se o ambiente estressante for retirado, as chances de desenvolvimento do câncer diminuem na mesma proporção. Por essa razão nosso estudo sugere o acompanhamento periódico do estômago excluso ou mesmo sua retirada.
O estudo de vocês analisou apenas mulheres. Por quê?
Nosso maior público no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP é do sexo feminino. Além disso, para garantir a homogeneidade do estudo e evitar o viés das características biológicas inerentes ao gênero, escolhemos manter apenas mulheres.
É possível saber se o mesmo fenômeno ocorre com os homens ?
Ainda não é possível afirmar, devido à falta de informações na literatura científica. Mais estudos são necessários.
Em termos de implicação prática, os senhores sugerem o monitoramento do estômago excluso após a cirurgia, certo?
O monitoramento do estômago excluso deve ser realizado para diagnosticar condições adversas que possam envolver essa região, como úlcera, gastrite, sangramentos e o próprio câncer. Por isso, é importante o acompanhamento de perto dos pacientes operados por essa técnica por gastroenterologistas.
Por: Naiara Magalhães
Fonte: grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)
Graziela Ravacci,nutricionista e educadora física
Dan Waitzberg,professor
Robson Ishida,endoscopista do Serviço de Endoscopia do Hospital das Clínicas de São Paulo,
Transcrito: https://saude.abril.com.br/medicina/brasileiros-desvendam-possivel-fonte-de-problemas-apos-cirurgia-bariatrica/